Um breve comentário sobre as diretrizes do KDIGO para o tratamento da hipertensão arterial na doença renal crônica

18 de março de 2021 às 13:41

Autores: Luis Cuadrado Martin, Rogério Baumgratz de Paula, Frida Liane Plavnik (Membros da Diretoria Executiva da Sociedade Brasileira de Hipertensão 2021-2022)

No sentido de manter os sócios atualizados com as diferentes diretrizes em hipertensão arterial, publicadas recentemente, os Doutores Luis Cuadrado Martin, Rogério Baumgratz de Paula e a Dra. Frida L Plavnik, como nefrologistas entenderam a necessidade de divulgar as recentes diretrizes da KDIGO voltadas para os pacientes hipertensos com doença renal crônica.

Resumo da diretriz e comentários

O KDIGO de hipertensão na Doença renal crônica (DRC) de 2021 (The Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) 2021 Clinical Practice Guideline for the Management of Blood Pressure in Chronic Kidney Disease for patients not receiving dialysis)1, foi publicado em março deste ano e tem por objetivo atualizar a diretriz antiga de 2012. Nesta edição, as diretrizes incluem crianças e transplantados e excluem o manejo de outros fatores de risco concomitantes. Um aspecto importante destacado nesse documento é a medida correta da pressão arterial (PA), bem como a meta pressórica e a modificação de estilo de vida. Discutem-se ainda as medicações anti-hipertensivas preferenciais.

Essa diretriz enfatiza em seu primeiro item algo que parece redundante, porém tem importância fundamental, que é a técnica correta da medida da pressão arterial, tendo em vista a importância do controle adequado dessa variável fisiológica sobre a progressão da DRC, é inadmissível que se fuja do padrão para obter o seu valor, uma vez que todos os trabalhos que demonstraram que controlar a pressão reduz a taxa de declínio da filtração glomerular, o fizeram com medidas padronizadas. Segue recomendando a aplicação de medidas de PA fora do consultório (MAPA e MRPA). Porém, a diretriz faz a ressalva de que ensaios clínicos que utilizaram a MAPA na avaliação da progressão da DRC não foram realizados e recomenda essa avaliação como linha de pesquisa específica na área.

No segundo item adota a recomendação da OMS para restrição de sódio a 2g/dia (equivalente a 5 g de cloreto de sódio). Necessário recordar que os brasileiros ingerem em média 12g de cloreto de sódio ao dia. Além disso, recomenda a realização de 150 minutos de atividade física de intensidade moderada na semana.

Ponto importante dessa diretriz se encontra no terceiro item. Baseando-se principalmente no estudo SPRINT-CKD, recomenda-se como alvo da PA os valores de 120/80 mmHg para todos os indivíduos com DRC, desde que medidos de forma padronizada. O grau de recomendação/qualidade foi considerado 2B, uma vez que se baseia em um único “trial”, ainda que de alta qualidade e com subgrupo pré-estabelecido.

Gostaríamos aqui de expressar uma observação pessoal: o método de medida padronizado proposto na diretriz ora em discussão diverge do utilizado no estudo SPRINT, no qual se utilizou a medida padronizada, porém sem a presença do médico. A questão principal não é se o aparelho é automático ou não, a questão é que no SPRINT o médico saía da sala por 5 minutos. Assim, o valor de 120/80 mmHg do estudo SPRINT, não é o mesmo 120/80mmHg obtido em consultório com a presença do médico, ainda que com medidas padronizadas. Por outro lado, cita corretamente meta-análises que mostraram redução de eventos cardiovasculares com o controle estrito da PA em portadores de DRC. Uma dessas metanálises2 foi anterior ao SPRINT, portanto as medidas eram obtidas na presença do médico, ao passo que a segunda3 avaliou 600.000 pacientes, sendo apenas 9.000 provenientes do SPRINT. Interessante notar que o documento ressalta que o objetivo desse controle é aumento da expectativa de vida, uma vez que a diminuição da progressão da DRC não é homogênea com o controle intensivo da PA nas diferentes faixas de proteinúria. Por fim, quanto ao alvo da PA, considera que o nível de 120/80mm Hg se aplica à DRC associada ou não ao diabetes. Há ainda algumas subpopulações na DRC, nas quais as evidências que apóiam a meta para PAS < 120 mmHg são menos rigorosas. Assim, as razões de risco/benefício incluem pacientes com diabetes, pacientes DRC estágios 4 e 5, proteinúria significativa e pressão arterial diastólica muito baixa, hipertensão do “avental branco” e extremos de idade. As diretrizes enfatizam ainda, a necessidade de mais estudos nessas subpopulações.

Tendo como base os estudos que compararam o bloqueio do sistema renina, tanto com inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) como com bloqueadores do receptor da angiotensina (BRA), com outras terapêuticas anti-hipertensivas, recomenda que em pacientes com albuminúria de qualquer nível, associada ou não ao diabetes, se lance mão preferencialmente de bloqueadores do sistema renina com associação de outras classes de anti-hipertensivos à medida do necessário para obter o alvo pressórico. Apesar de considerar recomendação/qualidade de evidência 2C para pacientes não diabéticos com albuminúria moderadamente elevada. Enfatiza também a contraindicação da associação de iECAs e BRAs.

Em relação ao acompanhamento da piora da função renal e/ou hipercalemia com o uso de iECA ou BRA, esta diretriz recomenda a avaliação laboratorial em 2 a 4 semanas após o início ou aumento da dose do iECA ou BRA.

Ainda em relação a esse tópico, e apenas para relembrar a ação desses agentes, vale destacar que o bloqueio da ação da angiotensina II leva à maior vasodilatação das arteríolas eferentes, com declínio na pressão de filtração intraglomerular que se expressam por aumento do nível de creatinina e menor TFGe. Tipicamente o aumento dos níveis de creatinina ocorre em duas semanas após o início ou ajuste do inibidor do SRAA e se estabilizam em até 4 semanas. Elevações superiores a 25-30 % em relação aos valores basais sinalizam para a necessidade de se investigar doença renovascular ou outros fatores como desidratação, baixo débito, uso de anti-inflamatórios etc.

Ainda, o bloqueio do SRAA inibe a ação da aldosterona resultando maior propensão à hipercalemia. Desta forma, em pacientes de risco para desenvolver hipercalemia, o potássio deve ser medido antes de iniciar ou aumentar a dose do inibidor do SRRA e em 1 a 2 semanas depois do ajuste.

Nos pacientes portadores de transplante renal o alvo estabelecido no atual KDIGO foi de 130/80 mm Hg, tendo em vista que os estudos que fundamentam controle de PA mais intensivo não tiveram a participação significativa de transplantados. Os bloqueadores dos canais de cálcio dihidropiridínicos foram recomendados como a classe de drogas preferencial nesses pacientes, tendo em vista a melhora na expectativa de sobrevivência do enxerto, mesmo sem vantagens ou desvantagens quanto à doença cardiovascular ou cerebrovascular. Ainda, excetua os portadores de transplante que tenham proteinúria, nos quais recomenda os bloqueadores do receptor da angiotensina, exceto na fase de pós-operatório com insuficiência renal aguda do enxerto ou nas transplantadas grávidas, ambas exceções fundamentadas por motivos bastante conhecidos.

Entre as crianças faz a observação, fundamentada no estudo ESCAPE4 que o controle estrito da PA nessa faixa etária corresponde ao percentil 50 para idade, sexo e altura na MAPA de 24h, exame que recomenda seja feito anualmente entre as crianças. As classes preferenciais recomendadas são os IECAs e os BRAs, porém sem evidências em estudos clínicos com desfechos duros. Por fim, consideramos que este KDIGO apresenta significativos avanços, porém há lacunas na literatura para que possamos nos guiar com absoluta segurança no manejo da hipertensão arterial na DRC.

Referências

  1. Cheung AK, Chang TI, Cushman WC, et al. Executive summary of the KDIGO 2021 Clinical Practice Guideline for the Management of Blood Pressure in Chronic Kidney Disease. Kidney Int. 2021 Mar;99(3):559-569.
  2. Blood Pressure Lowering Treatment Trialists Collaboration, Ninomiya T, Perkovic V, et al. Blood pressure lowering and major cardiovascular events in people with and without chronic kidney disease: meta-analysis of randomised controlled trials. BMJ. 2013;347:f5680.
  3. Ettehad D, Emdin CA, Kiran A, et al. Blood pressure lowering for prevention of cardiovascular disease and death: a systematic review and meta-analysis. Lancet. 2016;387:957–967.
  4. ESCAPE Trial Group,  Wuhl E, Trivelli A, et al. Strict blood-pressure control and progression of renal failure in children. N Engl J Med. 2009;361:1639–1650.